Eu vivo em um mundo operático, dramático, em que cada ação pode desencadear na destruição de um universo, ou na criação de algo completamente novo. Cada ato, cada inspiração é um extremo, é ponta de lança. Minha vida é uma uma saga escrita em poeira estelar.
O trecho acima é de um livro chamado “A Saga Particular”, de Milton Dantas, uma reflexão sobre a vida pessoal e as experiências universais e uma sociedade tomada pela opressão, injustiça e desigualdade. Dantas viveu no período da ditadura no Brasil e faleceu meses antes da restituição da República em 1984. Ele nunca viu seus livros serem publicados. Tudo foi feito após sua morte, por uma editora pequena, através de uma fonte anônima que detinha todos os manuscritos do romancista e poeta. Ao todo foram quatro livros, além do já citado. “A Fogueira”, “Retratos de Uma Mãe Esquecida”, “Nada a Perder” e o poema épico “Inferno”.
Dantas escrevia em segredo. Os manuscritos apressados, de caligrafia torta, em qualquer tipo de papel que encontrava, revelam o medo de uma engrenagem torta de ser descoberta. Substituída.
Eu sempre fui péssimo leitor. Nunca tive a atenção suficiente pra me manter em um romance até o fim. No máximo, li muitos livros científicos e teóricos na faculdade. Estou lendo um mesmo livro do Murakami desde agosto do ano passado. Sempre fui dos quadrinhos. Acho que os desenhos, as cores, me ajudam a compor a literatura visual na minha mente.
Mas eu li todos os livros de Milton Dantas
Graças à pirataria, claro. Eu sou de um tempo em que a internet ainda era composta por comunidades que preservavam a arte que veio antes de nós. Por obra do acaso eu encontrei, em 2011, em uma comunidade do, quase falecido, Orkut, PDFs de todos os livros de Dantas. 2011 foi um ano peculiar pra mim. Eu vivia a greve dos professores do estado, cursava o segundo ano do ensino médio pela segunda vez e, se tive quatro meses de aula, o ano todo, foi muito. Ou, pelo menos, é assim que eu me lembro.
A obra de Dantas me ajudou a passar por um período difícil, psicologicamente. Me ajudou a encontrar propósito em um período que eu já havia perdido tudo. É como meus filmes favoritos, que eu vejo anualmente perto do meu aniversário. Me lembra de quem eu sou e quem ainda posso ser. Curioso pensar assim.
Isso me faz refletir sobre a relação que temos com os autores da arte que consumimos. A contradição humana que é ser e estar, o eterno paralelo entre produzir e consumir. Duas pontas de uma única faca.
Meu autor favorito, por muito tempo, foi Warren Ellis. O romancista, roteirista e multi escritor britânico, careca, barbudo, existencialista. Sua obra pautou o fim da minha adolescência e o início de minha vida adulta como nenhum outro. Ele é, inclusive, o principal motivo de eu estar escrevendo uma newsletter. Orbital Operations é seu trabalho que mais me fez refletir sobre o mundo ao meu redor, sobre mim mesmo. Minha personalidade foi moldada pelas palavras que via na tela, escritas por ele, lidas por mim. Quando Ellis foi acusado de importunação sexual, abuso psicológico e sexual em 2020, entrei em uma crise profunda. Pois quem eu era, senão um reflexo brasileiro e pardo do que Ellis era? Eu estava fadado a ter o mesmo destino? Eu era um arrogante, abusivo, inconsequente e criminoso em formação? Parece ingênuo considerar tudo isso, mas é como encarar a pós-verdade como fato. Nossa interpretação de quem somos deixa de ser baseada no real e palpável, mas nas extrapolações que podem ser feitas a partir de vieses diferentes.
Eu não sou Warren Ellis e eu não sou Milton Dantas.
Eu penso muito na dicotomia em que Dantas vivia. Um homem solitário, condicionado pelo sistema a matar, torturar e, ao mesmo tempo em que não se reconhecia nos atos que cometia, era plenamente consciente e voluntário ao perpetuá-los.
A morte do ser, às vezes, acontece muito depois da morte da percepção do ser.
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