Carlos pega a carta deixada em cima da mesa. É um dia frio e nublado lá fora. Ele escolhe não acender as luzes para ler o que está escrito. O que entra pelas antigas janelas do casarão é algo tão difuso que, chamar de "luz do dia", seria um exagero tremendo. O envelope já foi aberto, provavelmente por algum de seus irmãos. Carlos não os vê há muitos anos. Nem a morte da mãe foi um evento forte o bastante para ele se dar ao trabalho de chegar a tempo.
Seu estado de saúde atual também não colabora com sua pontualidade. Aos 42 anos de idade, ele já tem duas hérnias de disco de estimação e um problema crônico com álcool. Coisas em que ele pode culpar o fator genético, ao invés de suas más decisões e hábitos. Pelo menos ele não fuma, o câncer de pulmão que matou sua mãe ele não vai herdar. Se ele dissesse que se lembra da causa da morte do pai, estaria mentindo.
Ele se senta para ler a carta, com muita dificuldade, já que se recusa a usar óculos. Nada disso importa. Nada do que está escrito ali faz sentido. Claro, por uma perspectiva semântica, de coerência e coesão, sim, a carta faz sentido, mas aplicado ao contexto de Carlos, tudo aquilo é um desperdício de tinta em papel.
Carlos não acredita guardar rancor de ninguém de sua família, mas prefere não manter nenhum tipo de relação com qualquer um deles. Ele não tem tanto tempo para que o inventário seja feito e os bens divididos. E ele também não sente falta da mãe.
Ele não sente falta dos dias frios, como esse, em que todos estariam dentro de casa sem se falar. Ele não sente falta dos gritos do seu pai, que costumavam cortar o ar como uma faca cega. Ele não sente falta do silêncio da mãe perante aos choros dele e dos irmãos. Ele parece ser o único a se lembrar. E não é possível que tenha inventado tudo isso.
Carlos pega a carta novamente, pois ele precisa reler uma palavra e apenas uma.
O café frio, que ele não se lembra de ter esquecido na mesa, o encara como o abismo. Ele sente que poderia pular ali. É quando ele ouve passos na casa pela primeira vez. Carlos sabe que está sozinho.
Olhar para trás é quase um reflexo, mas ele demora tanto que quase não vê, por cima do ombro, um vulto passando no limite do seu campo de visão. Apenas uma parte ainda indistinguível de um ser. Sua espinha gela completamente. Um frio paralisante, que sobe e desce pela sua extensão corporal. A musculatura de toda sua perna direita se contrai.
Ele não conseguiria correr se precisasse.
Carlos toma aquele gole de café frio sem hesitar. Ele se arrepende amargamente. Devagar, ele anda em direção à porta dos fundos. Ele quer sair. Quer ir embora e não voltar nunca mais pra essa sombra de uma memória.
Um grito repentino quebra o silêncio como o mais frágil cristal de quartzo. Afiado e perigoso. Um lamento gutural, entre choro e mais puro barulho, preenche o espaço entre todas as paredes daquela casa vazia. Carlos ainda não vê quem está atrás dele, mas, de qualquer forma, ele não conseguiria correr.
A lamúria que vinha de todo e qualquer canto da casa, cessa. E Carlos ainda não enxerga a figura atrás dele.
Ele percebe que prendia a respiração há algum tempo e a solta lentamente. A carne por baixo de sua pele fina, fria, se aquece pouco a pouco. O sangue em suas veias começa a circular, o mais próximo do normal em que acontece atualmente. Ele começa a se virar em direção à porta quando uma voz rouca e fraca sussurra, por necessidade, de uma forma que a dor é tangível.
- Pois não volte nunca mais.
Qualquer movimento que Carlos pensava ter recuperado, se interrompe quando sua coluna se trava completamente. Uma mão seca e enrugada toca sua pele. Uma mão tão fria, que nem parece estar ali.
Carlos vê o vulto com clareza pela primeira vez, ainda no limite da visão, ainda limitado pelo que sua vista embaçada o permite enxergar. O homem velho, de muito mais de oitenta anos, meio calvo, magro, corcunda, veste uma camisola branca e anda com muita dificuldade. Carlos se move em sua direção quando bate a testa no espelho. Ele vê aqueles olhos fundos, uma cratera que acomoda um olhar vazio de quem está ali, mas não está presente. Carlos nunca pensou que veria aquele rosto novamente. Ele não se reconhece mais. Nem quem é e, muito menos, quem foi. Uma memória que confunde o homem no final de sua vida. Ele era tão familiar ao sentimento, já pensou tanto na morte que nunca havia pensado que ela demoraria tanto para chegar.
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