- Eu nunca quis ser mãe. - Eva diz olhando em seus olhos através do espelho. - Acho que todo mundo sabe disso. - Ela aplica o delineado com um lápis em sua pálpebra inferior.
O resto da maquiagem está feita. Para alguém que passou boa parte da vida em uma quadra de vôlei sem se preocupar muito com qualquer outra coisa, Eva reencontrou no ritmo lento da vida de mãe e atriz um novo apreço por coisas que nunca tinha realmente se interessado antes. Seu apreço por chá de jasmim, videogames de puzzle, maquiagem, cerâmica. Alguém diria que, só se interessando por tantas coisas ao mesmo tempo e, basicamente, se tornando uma especialista em todas elas, a mulher contemporânea seria de algum valor pra sociedade opressora em que vivemos. Outros diriam que nem assim.
- Eva, cinco minutos. - Disse a assistente sem nem bater na porta do camarim.
Antes de romper o ligamento anterior cruzado do joelho direito pela segunda vez, o vôlei era sua vida, sua obsessão. Eva queria se tornar o melhor espécime de ser humano possível. Quando jovem, Eva era ambiciosa, determinada. Ela sabe que ainda é tudo isso, só sente que não é mais forte o suficiente.
Desde então sua vida parece ter desacelerado diante de seus olhos. Tudo acontece em câmera lenta, como se ela fosse veloz demais pro mundo ao seu redor. A gestação, o puerpério, a criação de sua filha, parecem ter empurrado Eva para o banco do passageiro. Tudo acontece com ela, nada mais acontece por ela e Eva não tem nem o direito de escolher a trilha sonora.
O casamento com Lucas também é algo a incomoda profundamente. Não que ela não o ame, não é sobre amor. Mas a dinâmica de poder. Ele é o escritor famoso, que vai em programas de TV e reflete sobre os amores passados. Ela é a atriz que interpreta Hamlet para um teatro vazio.
É óbvio que Eva havia sido escalada para o papel de Gertrudes, mas ela demandou que interpretasse Hamlet. É uma companhia de bairro, ninguém teria a audácia de dizer "não". Ela se lembra de ler ensaios e mais ensaios sobre a performance de Andre Braugher, como Henrique V, no Shakespeare in the Park de 1996. A fragilidade de um herdeiro relutante, o filho de um homem louco, e a potência existencial que tal atuação trazia para o texto. Era isso que ela queria.
É possível chamar Shakespeare de monotemático, se quiser. Ela nunca quis. A poesia em cada palavra em um texto de tantos anos atrás que soava tão, tematicamente, atual. Isso era um ponto sendo feito, não uma limitação.
Eva se levanta, sai da coxia em direção ao palco. Ela respira fundo, livremente, uma última vez pelas próximas horas. As cortinas se abrem e lá está Lucas, no lugar que ela havia reservado para ele. Ele sorri. O mínimo que ele podia fazer.
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