- Eu contei muitas mentiras das quais não me lembro mais. - Disse Lucas à sua terapeuta enquanto tentava evitar contato visual.
- E você acha que se lembrasse de todas elas faria alguma diferença? Nenhuma delas se tornaria verdade.
- Não, mas acho que eu assumiria melhor minha responsabilidade por elas.
- E o que te fez pensar nisso agora?
Ele se recusa a responder diretamente enquanto circula por outros assuntos até o fim da sessão. E ele sabe que ela percebeu.
Lucas caminhava sem necessidade naquela quinta-feira. Em uma noite quente e abafada de inverno. Ele, pacientemente, andava até um bar que nunca foi para encontrar uma amiga que não vê há anos. Brenda foi sua melhor amiga na época da faculdade e as maquinações do universo os separaram por muito tempo. Ela voltava a morar na cidade para assumir o cargo de professora substituta na universidade que estudou. Ele ainda escrevia livros sobre sobre homens tão medíocres quanto ele.
Com o celular na mão, como o irresponsável que é, Lucas não conseguia decidir entre Arthur Verocai e Radiohead enquanto no seu fone tocava sua mais nova obsessão, que ele tinha muita vergonha de assumir nos meios que frequentava. Ele olha pra cima e a vê pela primeira vez em anos. O mesmo cabelo cacheado, os mesmos óculos, mas, de alguma forma, tudo diferente.
- Cê tá querendo bater com a testa no chão? - Ela disse com um sorriso de canto de boca enquanto apagava o cigarro de palha.
Ele sorri.
Nunca houve aquele gelo inicial característico de muitos encontros e reencontros. Lucas e Brenda se conectam como se nunca tivessem passado tanto tempo em estados diferentes.
- Então cê realmente achava que ela ia te abandonar ali? Do nada? - Questionou ela depois de um bom tempo de conversa.
- SIM. - Ele responde com um tom de desespero, enquanto Brenda tenta segurar o riso. - Não ri, pô! É sério, eu não consigo explicar. - Ele pausa e toma um gole de cerveja. - Eu não me sentia tão inseguro assim há muito tempo. Era como se toda e qualquer coisa que eu fizesse fosse motivo de abandono.
- E você fez alguma coisa? - Disse ela enquanto tirava e limpava os óculos um pouco embaçados.
Lucas não responde imediatamente. Ele não poderia dizer que pensou em fazer "alguma coisa". Muito menos que pensava naquele momento. As frações de segundo entre a pergunta de Brenda e a resposta pareciam séculos na cabeça de Lucas.
- Lembra da Francisca?
- Sua primeira namorada?
- Ela não foi, necessariamente, a primeira, mas tudo bem.
- Ok, o que tem ela?
- O beijo dela sempre teve gosto de saudade. Como se fosse algo que eu já sabia que não ia durar e que eu me lembraria pra sempre.
- Cê sabe que isso não faz o menor sentido, né?
- Tu é muito prática, Brenda. Caralho.
- Não, sério. Cê fica nessas aí de “ai sou romântico” e não percebe o quanto romantizar tua própria vida te prende. - Brenda se levanta. - Cê realmente acha que se lembra do gosto do beijo de uma namorada de anos atrás? - Ela vira as costas em direção ao banheiro.
“Era frio”, ele pensa.
Ele nem se lembra de ter pedido um negroni, mas aquele amargo que quase agride as papilas gustativas não o deixa esquecer. Naquele momento Brenda falava abertamente sobre sua vida. Seus sucessos, conquistas, amores. Ele fingia que escutava. Os dois entraram na mesma turma de jornalismo há mais de 10 anos e hoje ela era uma profissional renomada da área que tinha acabado de ganhar o maior prêmio de jornalismo do país. E ele era um escritor que bebia negroni sem gostar.
- Às vezes eu sinto inveja dela, sabe? - Disse ele sem pensar.
- … mas aí o pneu— Dela quem, homem? - Ela balança a cabeça em confusão.
- A Dory do Procurando Nemo. - Ele responde a primeira coisa que vem à mente. - Às vezes eu acho que lembro coisa demais.
Ela franze a testa em estranheza. - Mas como eu tava dizendo, aí o pneu estourou quase que completamente. Foi aí que o ônibus capotou. - Ela decide, simplesmente, ignorar o que ele disse.
Lucas volta a prestar atenção em Brenda eventualmente. Pelos motivos errados, óbvio. Seus olhos por trás daqueles óculos quase embaçados de calor, seus lábios, sua pele, seus lábios, a camiseta dos Power Rangers que, por algum motivo, ela vestia.
Ele se inclina para beijá-la. A mera intenção de tal ato o faz contorcer de constrangimento. Mesmo meio bêbado ele tem um mínimo discernimento da situação e, também, sua auto estima tem estado tão baixa ultimamente que a ideia da rejeição já o faz desistir. Ele se levanta, vai ao banheiro e sai pela porta da frente. Sem pagar a conta.
Lucas vai pra casa, toma um banho e se deita ao lado de Eva, ela se acorda.
- Desculpa, eu te acordei?
- Que? Não, tudo bem. - Ela fala entre um bocejo enquanto se vira em direção a ele. - E aí, como ela tá? Se divertiu? - Eva pergunta embolando as palavras e ainda de olhos fechados.
- Tá bem, foi legal sim.