Sua pele apodrecendo tinha cheiro de chocolate. Talvez seu corpo já estivesse fermentando abandonado há dois dias naquele porta-malas. A morte de Dantas seria esquecida como um participante eliminado na segunda semana de qualquer reality show. O primeiro é sempre lembrado pelo seu fracasso, já o segundo? É obrigado a conviver para sempre com sua própria mediocridade. Sua carreira como agente da lei se resumiria muito bem a isso. Dantas nunca foi um policial heróico, nunca foi corrupto, nunca foi útil. Sua morte foi um mero acidente. O policial errado, no lugar errado, na hora errada. Dantas sempre quis ser escritor, mas nunca teve a capacidade cognitiva ou poética de formular uma linha de pensamento com mais de um significado.
Ele abre os olhos. O buraco em sua testa não escorre mais. Sua visão deixa de ser turva aos poucos, mas ele não vê nada distinguível no horizonte. Areia, terra, algumas montanhas e silhuetas gigantes, do que parecem ser corpos andando sem rumo. Talvez esse seja seu inferno, talvez não. Ouve uma voz chamando um nome do qual não se lembra mais. É como se estivesse escutando pela primeira vez.
Dantas se levanta sem perceber que estava deitado. O chão sob seus pés parece asfalto molhado, mas não parece ter chovido. Está descalço, descamisado. Ele começa a andar pela vastidão, sem motivo aparente, mas não é como se ele tivesse algo melhor para fazer. Nada ao seu redor realmente desperta curiosidade. Até que ele sente, pela primeira vez em muito tempo, o perfume da dama da noite no ar.
Ele sempre quis saber como a sinestesia funcionava. Em vida, Dantas era daltônico e nunca gostou de música. Nunca foi das Artes, mas dançava valsa. Dizia ele compreender a lógica, mas o único motivo para que dançava, era para se lembrar dela. Beatriz foi o maior amor de sua vida. Esse amor perdurou por seus mais de sessenta anos de vida e, agora, atingia a eternidade. Beatriz faleceu antes de completarem 5 anos de casados. Dantas estava doente, hospitalizado, quando ela deu fim à própria vida. Dantas nunca foi casado, mas agora ele sabe porque está no inferno.
Ele precisa encontrá-la.
Dantas nunca encontrou um propósito em vida. Um policial em um período ditatorial era mais uma engrenagem na máquina de opressão, do que uma pessoa. Ser responsável pelo mal de dezenas, centenas de pessoas requer um tipo de desconexão com a moral que Dantas nunca teve. A culpa católica o libertava. Ele sempre se interessou pelo hinduísmo e a perspectiva cosmológica dessa cultura milenar. Talvez uma das mais antigas do reino da Terra. Ele acha curioso que o inferno não se pareça com nada que ele imaginou, mas, ao mesmo, era tão familiar.
Dantas se lembrava do cheiro do sangue de Beatriz sem nunca ter sentido. Ele se lembrava de chegar em casa depois de sair do hospital e sentir aquele cheiro impregnado no sofá, nas cortinas e em todas as suas roupas. Dantas viveu anos com a companhia do sangue de um amor que nunca teve.
O cheiro de gasolina no ar parece mel. O homem respira fundo, como se seus pulmões alagados de sangue ainda funcionassem. O céu escuro e as nuvens vermelhas o lembram de um estranho período de sua vida. Cinzas caem como neve em um lugar constantemente em chamas. O fogo do inferno é muito mais metafórico, ele percebe. Um ardor paranormal que permeia toda e qualquer molécula inexistente naquele plano.
Dantas se lembra da última dança que nunca teve com Beatriz. Ele se lembra da viagem que não fizeram a Portugal, Espanha, Itália. Dantas nunca viajou em vida, nunca teve dinheiro, tempo ou ânimo. Milênios se passam durante todo o tempo em que ele percorre o inferno e Dantas nunca encontrou ninguém além do próprio reflexo em poças de piche. Mas ele nunca parou.
Seus ossos quebrados perfuram o que resta de sua carne apodrecendo. Dantas não para de andar por um instante e segue em sua jornada sem destino. "A jornada te muda", ele pensa. Dantas ouve sua própria voz depois de tanto tempo percorrendo o inferno. Um grito abafado pela própria garganta ensanguentada. Nada ao redor tem o poder de transformá-lo, mas ainda assim, a jornada o muda. Mesmo sem nunca ter entendido poesia, sem conseguir sentir a música das entrelinhas do mundo, Milton Dantas se torna arte depois da morte.
Ele anda em círculos no inferno pensando chegar a algum lugar. Dantas não percebe que seu propósito de vida era encontrar o amor. E, finalmente, ele encontrou.
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