Lucas Yoshida já era renomado na literatura brasileira há algumas décadas, mas seu livro mais recente, Dádiva de Sangue, se tornava, dia após dia, o maior sucesso de sua carreira. Uma adaptação para o cinema estava programada para começar a filmar no verão do próximo ano. A mistura de meta comentário literário com aspectos autobiográficos era totalmente esperada vindo de um autor que fez isso durante todo o período em que se autointitulou "escritor". O curto ano em que ele "foi" "jornalista" não foi tão diferente.
Aos 57 anos, divorciado, Yoshida, que passava mais tempo sendo dono e proprietário de um fracassado bar de jazz no interior de São Paulo, não se dedicava mais à escrita como em seus tempos áureos. Ele preferia passar seu tempo bebendo whisky e fumando cigarro, duas coisas que não fazia, mas ainda gostava de se imaginar fazendo, pensava que remetia à sua juventude e aos filmes de Wong Kar-wai, que tanto amava. Lucas se sentia sozinho. O que era óbvio, pois ele realmente estava. Betânia, sua filha, morava na Holanda há anos. Ela dizia odiar aquele lugar, mas continuava lá, distante. Eva, sua ex-esposa, era a primeira atriz brasileira a concorrer um Oscar em anos. Eles já não se falavam nem por obrigação. O pobre escritor fazia por merecer, não sabia mais conviver em sociedade e não se esforçava minimamente para tal. Dádiva de Sangue era muito sobre isso.
Nem uma herança, nem uma maldição, a Dádiva de Sangue era um meio-termo, uma contradição. Era sobre histórias que deveriam ser contadas, histórias de gerações passadas, presentes e futuras. Uma obrigatoriedade genética a se cumprir. Muitos povos acreditavam não tinha distinção entrado o sangue e a alma. Eram sinônimos, ou exatamente a mesma coisa. Era daí que Yoshida se baseava em seu comentário, era nisso que ele se apoiava na vida.
Ele se preparava para receber uma equipe de filmagem em seu bar. Daria uma entrevista sobre a adaptação do seu livro e toda sua carreira. Iria ao ar, supostamente, naquela quinta-feira. Ele se preparava pra não falar sobre a mulher um pouco mais jovem, com quem ele teve um breve caso recentemente. Ele diria que, com tanto tempo de vida, já teria aprendido. Mas todos sabemos que 57 anos, apesar de muito, não é tanto tempo assim.
Ele olhava para o bar, o pianista sozinho em um canto, preso numa mesma melodia repetitiva e improvisada, o balcão com as mesmas duas pessoas de sempre, uma mesa com um jovem hipster que só tirava o olho do celular para observá-lo por alguns instantes e refletia se aquela era vida que ele realmente tinha.
Alguns anos antes, Lucas ia ver Eva em uma montagem de Hamlet. Ele sabia o quanto aquela peça importava pra ela. Ele sabia o quanto Shakespeare importava pra ela. Eva tentava esconder por trás de toda a força que tinha, a sensibilidade visceral que pulsava em suas veias. A história de Hamlet parece genérica hoje em dia, mas é um conto sobre a contradição humana em seu primor. Lucas não desprende os olhos de Eva por um instante durante a peça, naquele momento ele tem certeza que passará o resto da vida com ela. O que não é verdade.
Após a apresentação, ele se aproxima da esposa pensando que, naquele momento, aquela havia sido a coisa mais linda que ele havia visto na vida.
- Não fala nada. - Eva diz, fechando um dos olhos, quando uma gota suor cai pela pálpebra superior.
- Mas eu não disse nada.
- Isso, continua assim.
- Te amo. - Ele diz, sorrindo, economizando as palavras.
- Tá bom. Eu aceito. - Disse ela, sorrindo de volta.
Lucas não sabe o porquê se lembrou deste momento antes da entrevista. Ele nunca foi um homem de economizar palavras, sempre foi tagarela, um escritor verborrágico, que usava e abusava do pleonasmo apenas para enfatizar suas intenções. Ele nunca foi um autor que sabia qual história estava contando, enquanto contava, mas ele a contava mesmo assim. Ele aceitava a vida como ela era e continuava contando suas histórias.
- Podemos começar? - O entrevistador pergunta cordialmente.
- Quê? Eu achei que já tava na metade. - Ele abre um sorriso bobo com o olhar.
Alguns minutos depois, no meio da entrevista, Lucas já estava perdido em meio às suas próprias palavras.
- [...] e comentaristas de esportes adoram se referir ao basquete como, “poesia em movimento” exatamente por isso. Pela incerteza e inconstância de uma jogada bem feita que, ao mesmo tempo, é executada com perfeição e precisão. É exatamente isso que eu almejei em minha escrita todos esses anos. Eu tento alcançar uma naturalidade e espontaneidade na execução, prestando atenção em cada detalhe. É tudo uma farsa bem elaborada. - Ele diz, levando o copo de whisky à boca.
- Tem certeza que “farsa” é a palavra? Porque sua escrita é extremamente honesta, você está sendo extremamente honesto aqui. O que faz com que isso seja uma farsa?
- Até a ficção é farsa. Todos os meus protagonistas são o mesmo. Eu. Até quando eu escrevi mulheres protagonistas, eu tava apenas falando de mim e mudava o gênero. Tudo que eu escrevo é sobre mim que, além de uma farsa, é egocêntrico. Eu faço uma ficção de mim mesmo pra refletir tudo que eu tenho passado na vida. Amores, anseios, mais amores e mais anseios. Eu não posso dizer que é tudo que todo escritor faz, mas é o que eu faço.
- É aí, então, que se encaixa sua Dádiva de Sangue?
- É genético, apesar de meus pais não serem escritores. É isso que define a diferença entre hereditário e genético, inclusive. São histórias que estão em meu sangue porque são histórias de quem eu sou, de quem eu fui. Eu me lembro de uma sessão de terapia que me marcou em que eu disse, “eu já contei mentiras das quais nem me lembro mais”. Como se estivesse falando algo super profundo, mas isso acontece com todo mundo. O que isso diz sobre mim é que eu me preocupo com algo de que nem eu sei mais o que é. Essa sensação que perdura e só é exorcizada quando eu escrevo de caneta em papel… O que também não é verdade, já que eu prefiro lápis.
Leia, “Força”, “Honestidade” e “Abandono”, as primeiras partes dessa história.
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